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quinta-feira, 21 de abril de 2016

Por onde começar?


Que se comece sempre pelo primeiro livro que te pegar de jeito
Na semana passada recebi um pedido que volta e meia me fazem. Um pai, percebendo germinar o interesse de seu filho adolescente pela leitura, me pergunta se eu poderia lhe indicar algum livro. E complementa que gostaria de introduzir o filho ao mundo da filosofia, mas que os livros de filosofia lhe parecem difíceis demais. Chegou a presentear o filho com uma introdução à filosofia, mas a leitura não "pegou".Afinal, "por onde começar?", é o que no limite pergunta o pai. Trata-se de uma bela questão, uma questão, pode-se dizer, filosófica: a sua mera formulação já situa o formulador às portas da filosofia. Essa não apenas começa historicamente com uma pergunta espantada — o célebre thauma de Aristóteles — mas recomeça a cada vez com uma questão. Uma questão, por sua vez, não é uma mera pergunta. É uma pergunta em estado avançado para trás. É uma pergunta que começa por desnaturalizar as respostas automáticas. E é por essa espécie de “limpeza da situação conceitual”,parafraseando Valéry, que recomeça sempre a filosofia. Geralmente, um filósofo, quando perguntado, não responde à pergunta, e sim pergunta a pergunta.
Meu interlocutor sugere que à pergunta “por onde começar a filosofar?”, a resposta adequada seja “pelo começo”. Será? De minha parte penso que não há nada menos adequado como introdução à filosofia do que livros de introdução à filosofia, por melhores que esses sejam. Pois não costuma haver neles a energia de invenção, de surpresa, de desconcerto que há nos grandes livros dos grandes filósofos. A paixão pela filosofia começa com um arrebatamento, um estranhamento súbito do mundo. Introduções, entretanto, são obras por natureza mais corretas, equilibradas, menos surpreendentes — a não ser que sejam uma espécie de introdução avançada, aí estaríamos diante de uma obra de história da filosofia. Mas então mesmo é que estaríamos longe de uma obra introdutória, pois histórias da filosofia são melhor aproveitadas por quem já conhece as obras filosóficas.


Portanto voltamos ao ponto de partida: por onde começar? Outros filósofos discordariam de mim, mas eu penso que o pensamento não tem uma única porta de entrada (que seria a Grécia antiga). É famosa a boutade de Whitehead, segundo a qual toda a história da filosofia é uma nota de pé de página a Platão. E é verdade que qualquer pensador do século XX é o elo mais recente de uma cadeia que remonta à origem da filosofia. Mas é verdade também que muito dessa anterioridade está contida no presente do pensador em questão. Se antes de eu ler Deleuze eu tiver lido Bergson, Nietzsche, Kant, Espinoza, até os gregos, eu terei um aproveitamento certamente mais complexo de Deleuze. Mas e se não houver nesses autores, para mim, a centelha, o desconcerto capaz de fundar a paixão filosófica? Pois esse desconcerto, como a lógica das paixões humanas, é da ordem singular de um encontro: não se dá com os mesmo autores para as mesmas pessoas.
A um começo cronológico ou mesmo lógico, eu apresentaria a alternativa do caminho do desejo. Que se comece sempre pelo primeiro livro que te pegar de jeito. E que a partir de então siga-se pela lógica singular das questões que te mobilizam. Essa lógica é como a de um hipertexto, onde determinadas questões desembocam em outras, sem obrigar a uma compreensão e um interesse homogêneos da totalidade de uma obra. Eu, por exemplo, costumo conhecer autores com profundidade, mas sem aprofundamento. Creio conhecer com profundidade Lacan, tendo contudo lido poucos de seus seminários, e sempre incompletos. Mas o que sei, sei “de coração”, como disse Deleuze sobre seu conhecimento de Espinoza.
Se eu tiver que indicar livros por onde começar (mas não sei se farei com isso melhor obra que o acaso), recomendaria grandes livros de grandes filósofos, livros entretanto destituídos de certa tecnicalidade que faz da filosofia uma disciplina cheia de pré-requisitos. Esses últimos livros também têm enorme importância, fique bem claro. Deleuze nota que há dois modos possíveis de fazer filosofia: um de dentro da história da filosofia, outro de fora. Relativamente à questão do começo, os filósofos de dentro, embora sejam os que se colocam o problema das origens, me parecem menos adequados que os filósofos de fora, que se colocam o problema do originário. Assim, a questão do começo seria melhor encaminhada pela escolha de textos que não tratem o conhecimento da história da filosofia como pré-requisito, do que pela exigência desse conhecimento. Outros discordariam de mim. Mas isso já é filosofar.
Francisco Bosco

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