Que se comece sempre pelo primeiro livro que te pegar de jeito
Na semana passada
recebi um pedido que volta e meia me fazem. Um pai, percebendo germinar o
interesse de seu filho adolescente pela leitura, me pergunta se eu poderia lhe
indicar algum livro. E complementa que gostaria de introduzir o filho ao mundo
da filosofia, mas que os livros de filosofia lhe parecem difíceis demais. Chegou
a presentear o filho com uma introdução à filosofia, mas a leitura não
"pegou".Afinal, "por onde começar?", é o que no limite
pergunta o pai. Trata-se de uma bela questão, uma questão, pode-se dizer,
filosófica: a sua mera formulação já situa o formulador às portas da filosofia.
Essa não apenas começa historicamente com uma pergunta espantada — o célebre
thauma de Aristóteles — mas recomeça a cada vez com uma questão. Uma questão,
por sua vez, não é uma mera pergunta. É uma pergunta em estado avançado para
trás. É uma pergunta que começa por desnaturalizar as respostas automáticas. E
é por essa espécie de “limpeza da situação conceitual”,parafraseando Valéry,
que recomeça sempre a filosofia. Geralmente, um filósofo, quando perguntado,
não responde à pergunta, e sim pergunta a pergunta.
Portanto voltamos ao ponto de partida: por onde começar? Outros filósofos
discordariam de mim, mas eu penso que o pensamento não tem uma única porta de
entrada (que seria a Grécia antiga). É famosa a boutade de Whitehead, segundo a
qual toda a história da filosofia é uma nota de pé de página a Platão. E é
verdade que qualquer pensador do século XX é o elo mais recente de uma cadeia
que remonta à origem da filosofia. Mas é verdade também que muito dessa
anterioridade está contida no presente do pensador em questão. Se antes de eu
ler Deleuze eu tiver lido Bergson, Nietzsche, Kant, Espinoza, até os gregos, eu
terei um aproveitamento certamente mais complexo de Deleuze. Mas e se não
houver nesses autores, para mim, a centelha, o desconcerto capaz de fundar a
paixão filosófica? Pois esse desconcerto, como a lógica das paixões humanas, é
da ordem singular de um encontro: não se dá com os mesmo autores para as mesmas
pessoas.
A um começo
cronológico ou mesmo lógico, eu apresentaria a alternativa do caminho do
desejo. Que se comece sempre pelo primeiro livro que te pegar de jeito. E que a
partir de então siga-se pela lógica singular das questões que te mobilizam.
Essa lógica é como a de um hipertexto, onde determinadas questões desembocam em
outras, sem obrigar a uma compreensão e um interesse homogêneos da totalidade
de uma obra. Eu, por exemplo, costumo conhecer autores com profundidade, mas sem
aprofundamento. Creio conhecer com profundidade Lacan, tendo contudo lido
poucos de seus seminários, e sempre incompletos. Mas o que sei, sei “de
coração”, como disse Deleuze sobre seu conhecimento de Espinoza.
Se eu tiver que
indicar livros por onde começar (mas não sei se farei com isso melhor obra que
o acaso), recomendaria grandes livros de grandes filósofos, livros entretanto
destituídos de certa tecnicalidade que faz da filosofia uma disciplina cheia de
pré-requisitos. Esses últimos livros também têm enorme importância, fique bem
claro. Deleuze nota que há dois modos possíveis de fazer filosofia: um de
dentro da história da filosofia, outro de fora. Relativamente à questão do
começo, os filósofos de dentro, embora sejam os que se colocam o problema das
origens, me parecem menos adequados que os filósofos de fora, que se colocam o
problema do originário. Assim, a questão do começo seria melhor encaminhada
pela escolha de textos que não tratem o conhecimento da história da filosofia
como pré-requisito, do que pela exigência desse conhecimento. Outros
discordariam de mim. Mas isso já é filosofar.
Francisco Bosco
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